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O Circo de Gredos - Almanzor e Galana

Ameal Del pablo
Ameal del Pablo - Circo de Gredos

Quem escutasse com atenção o caos de conversas que pairava no refúgio do Circo de Gredos (Espanha), à hora do jantar, facilmente se aperceberia da elevada percentagem de lusitanos que povoavam a sala. Aproveitando a "ponte" do Carnaval de 2002, dezenas de montanheiros portugueses rumaram a Gredos, preenchendo por completo, não só as camas existentes, como o espaço para tendas no exterior. O Neve Estrela decorreu no mesmo fim de semana, mas a julgar pela amostra, não deve ter tido muita afluência. Pela minha parte, integrei uma "coligação" de clubes que incluía gente do GMES, do Ar Livre e do CIMO. Apesar de escalar rocha há já muitos anos, esta foi a minha estreia em Montanha.
Aproveitámos a noite de Sexta para Sábado para empreender a viagem. O ponto de encontro era a Plataforma, onde os carros ficam estacionados. Estamos a cerca de 2 horas e meia do refúgio. Calçamos as botas de plástico e as polainas, colocamos as pesadas mochilas às costas e iniciamos a marcha. O caminho segue por cotas sucessivamente mais elevadas em direcção a um prado verdejante onde se avistam já manchas dispersas de gelo e neve. Subindo mais um pouco chegamos aos Barrerones.
Este é o momento em que vemos pela primeira vez todo o Circo. Fazemos uma pequena pausa, para reunir de novo o grupo, junto de um painel que ilustra os principais cumes desta formação geológica. Mais uns passos andados e veriamos já o refúgio, junto à grande lagoa.
Painel informativo sobre os cumes de Gredos - Barrerones


 

O resto do percurso é sempre a descer e chegamos rapidamente ao nosso destino.
Embora tivéssemos tentado reservar lugar com antecedência, a já referida super afluência de montanhistas nacionais, forçou-nos a dormir no exterior, acampando sobre a neve. Felizmente o tempo não nos traiu.
A noite em branco e a marcha forçada não me deixaram energia para acompanhar os que foram escalar um pequeno corredor logo após a montagem das tendas. Voltariamos a reunir-nos para o jantar, no interior do refúgio.
Recolhemos cedo aos sacos-cama, que o cansaço era muito e o frio não convidava a serões prolongados.

No dia seguinte, após um escasso pequeno almoço no refúgio, partimos para a nossa primeira excursão. Constituíamos um numeroso grupo de 11 montanheiros, liderado pelo Luís Madeira. Subimos o corredor da Vermeja, em direcção à portilla do mesmo nome, sem grande dificuldade. Até aqui o meu contacto com a neve resumira-se a umas quantas temporadas de ski e snowboard. A ausência de meios mecânicos e a substituição de uma tábua de snowboard por um par de botas de plástico equipadas com crampons aguçados dá uma prespectiva completamente diferente ao cenário. Salvaguardadas as devidas proporções, é como comparar a Costa da Caparica com uma caminhada em pleno deserto. A areia é a mesma, mas as moscas são diferentes.
Decidimos fazer uma pequena pausa para recuperar energias em plena Portilla de la Vermeja. Àquelas altitudes o efeito de rarefacção do ar aínda não se faz sentir, pelo contrário a amplitude da vista parece fazer-nos respirar mais intensamente, como se o ar em vez de oxigenar o sangue o substituisse. Sentia-me leve...
A partir deste ponto, seguimos uma crista rochosa à nossa esquerda - o Cuchillar de las Navajas - que nos levaria até ao corredor dos Hermanitos. O único obstáculo com que nos deparámos foi uma pequena parede de rocha, onde encontrámos um grupo da Escola de Alta Montanha do Porto que fazia o mesmo percurso, mas no sentido contrário. Esperámos que eles subissem para podermos então montar uma linha de rappel e continuar. Iniciámos a descida pelo corredor dos Machos e atravessámos depois para a portilla dos Hermanitos.
Almanzor
Almanzor visto do Cuchillar de las Navajas

Os Hermanitos são três agulhas de rocha na continuação da crista que vinhamos percorrendo. Tinhamos previsto escalar um deles, mas quando chegámos ao corredor que lhe dá acesso já não tinhamos tempo suficiente para esse empreendimento e decidimos ir-nos divertir numa pequena cascata de gelo que haviamos visto de manhã. O Luís Madeira e o Carlos Teixeira escalaram-na à frente, os restantes escalámo-la em top. Eu fui o último porque temia que, a minha falta de prática nestas andanças, me fizesse destruir toda a formação a golpes desajeitados de piolet. Depressa compreendi que, contrariamente à minha expectativa inicial, uma pequena cascata como aquela escala-se com muita facilidade e é bastante divertido. Fiquei com água na boca para novas incursões neste tipo de "falésia".

A segunda noite com a neve como colchão correu-me melhor que a primeira. Não sei se por fadiga ou por algum fenómeno de habituação, senti bastante menos frio.

De manhã, quando acordámos, a memória do dia anterior impelia-me a saltar do saco-cama e partir de novo para os corredores e cristas, mas sentia inúmeras fibras musculares, estratégicamente distribuídas por todo o corpo, a ameaçar uma greve geral. Só à custa de muito diálogo, consegui convencê-las a erguerem-me a carcassa massacrada. Confesso que menti descaradamente quando lhes disse que aquele dia seria uma brincadeira de crianças. Esperava-nos uma longa excursão com passagem pelo topo dos 2 cumes mais emblemáticos do Circo: a Galana e o Almanzor.
Almanzor
Almanzor visto do Cuchillar de las Navajas

Depois da rotina matinal, partimos em fila desordenada e trôpega, até nos habituarmos de novo ao saltos altos e ao ritmo da caminhada. Passámos junto do Ameal Del Pablo, que ficou na lista das próximas ascensões. Reunimos todo o grupo e estabelecemos a estratégia. Iriamos trepar o corredor S.E. da Galana, até ao colo que lhe dá acesso. Olhando para aquela fina língua de neve, com troços de 50º de inclinação e 2 zonas de rocha com um aspecto agreste, preparei-me para um longo e árduo esforço. Seguimos no rasto de outros montanheiros que alí haviam passado no dia anterior e, quase sem darmos por isso, estávamos no colo, com a elevação rochosa da Galana à nossa direita. Só nesse momento reparei que, sob as correias do capacete, sentia latejar o coração. Afinal aquilo custa!
A parte restante da Galana é relativamente trivial, mas a vista que se tem do cume, com 2564m de altitude, é compensadora e merece, só por sí, todo o sacrifício de que se revestiu a subida.

A próxima etapa desta jornada era o Almanzor, o ponto mais alto da Serra de Gredos, com 2592m de altitude. Entre um cume e outro tivémos que atravessar uma cumeada, apelidada de Venteadero, de onde se tem uma vista magnífica para ambos os lados. Seguiu-se uma travessia mais delicada, que passámos encordados, em direcção a um pequeno corredor que nos deixou na base da última pala de gelo que nos levaria ao ansiado Almanzor. Este é um dos troços mais delicados desta escalada. Há que superar uma inclinada pala gelada seguida de um obstáculo de rocha que termina praticamente no cume. Embora os montanheiros mais experientes passem este obstáculo sem se encordarem, por mim recomendo vivamente a utilização da corda. A escalada de troços rochosos com pés de gato Koflach e sola de crampons não é das coisas mais seguras deste mundo.
Almanzor
Uma parte do grupo no topo da Galana (2564m)

Para a descida montámos um rappel até ao início da crista de ligação com o corredor do Crampon. Acabámos por dar boleia a uma cordada nacional, claramente impreparada para aquele tipo de aventura. Descemos o Crampon até ao corredor da Vermeja, que tinhamos subido no dia anterior.
O dia estava quente, tornando a neve um pouco mole, o que nos permitiu descer de forma rápida e segura até ao refúgio.

Na manhã seguinte já não foi possível enganar a musculatura. Foi necessária muita firmeza para conseguir convencer as pernas a colaborarem no percurso de regresso aos carros. Depois de iniciado o caminho, a rotina instala-se, tornando mais fácil encantar os sentidos com a beleza daquelas montanhas. No alto dos Barrerones, a derradeira contemplação daqueles cumes, agora familiares. Fica a promessa de voltar, talvez com objectivos um pouco mais ambiciosos.

Zé Maria - zm@gmesintra.com

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