2º Encontro Nocturno
de Boulder de Sintra
Capuchos - Outono de 2004
Organização: Vertical / GMES
Quem visite o Convento dos Capuchos, em Sintra, fica seguramente impressionado com a aspresa da vida no seu interior na época em que foi habitado. Mandado construir em 1560 por D. Álvaro de Castro, por promessa de seu pai, integrou-se de forma tão perfeita na paisagem que dificilmente damos conta de como foram aproveitados tantos calhaus já existentes, em diversas partes da estrutura e do “mobiliário”. Talvez nunca ninguém tenha vivido tão diluido nos blocos graníticos de Sintra como os Capuchos, que escolheram este local quase troglodita para cumprirem os seus votos religiosos.
Há um grupo de gente que segue hoje algum desse ascetismo, consumindo a pele dos dedos em intensos abraços aos blocos vizinhos deste monumento. São os escaladores de bloco ou boulder. Encontram-se frequentemente nesta área, com uns bizarros colchões às costas, transportando umas bolsas que contêm um pó suspeito, onde mergulham as mãos, com ar alienado, antes de se atirarem a um qualquer bloco de rocha, que não largam enquanto não ficam com as polpas dos dedos em carne viva.
Num dia de Outono de 2004, algumas horas após o por do Sol, esta irmandade foi avistada nas imediações do parque de estacionamento do Convento dos Capuchos. De início eram apenas meia-duzia, e reuniam-se em redor de um ecrã suspenso entre as árvores, assistindo em delirio à projecção de um filme. Era apenas o arranque do que foi chamado o Segundo Encontro de Boulder Nocturno de Sintra, ao que parece, organizado pelo GMES e pela loja Vertical.

Entretanto foram-se juntando mais alguns e lá pelas 21:30h começaram a dirigir-se ao local das celebrações, seguindo uma pista de luzes suspensas no meio do breu, à laia de estrelas de uma estranha constelação.

Na zona de maior concentração de blocos, apenas se viam os pequenos feixes de luz que lhes saiam da cabeça e o circulo de granito que cada um iluminava, como farois na noite escura. Trepavam à vez cada calhau, uns apenas por uma face, outros por diversas. Chegados ao cimo, como Sísifo, saltavam para o chão e recomeçavam por outra linha ou noutro calhau. A cerimónia colectiva durou algumas horas. Quem os visse do alto de uma das pedras diria estar a ver o céu reflectido num lago. Apenas se viam muitas luzinhas em movimento, como formigas cósmicas.

Habitualmente, durante o dia esta actividade produz ruído. De noite, talvez pela magia do ambiente, ou por se sentir o espirito dos Capuchos ali tão perto, as conversas eram feitas em surdina. Cada participante tinha um mapa em papel, com os problemas catalogados de acordo com uma escala incompreensivel, provavelmente fruto de um profundo trabalho de criptografia: V+, 6b, 6a+, V, 6c, etc.

Passadas algumas horas, foi dada a notícia de que seria servido “Caldo Verde”, seguramente um nome de código para a mágica poção, que lhes dá tantos poderes. Começaram a ser recolhidas as luzes suspensas das árvores e quase todos regressaram ao local inicial. Nesse preciso momento, como resultado de todo aquele ritual, desaba finalmente a chuva, que veio lavar as pedras das marcas de pó que todos haviam deixado. Só uma grande sintonia com a mãe Terra poderia permitir tal feito.

Quanto à tal poção, foi servida quente, diria mesmo quente demais para quem tem os dedos em ferida, mas todos a tomaram com grande satisfação. Parecia francamente saborosa e reconfortante.

Devia rondar as 2 da madrugada quando os últimos participantes abandonaram o local. Para trás deixaram apenas o silêncio e a solidão das pedras, tal como as tinham encontrado. Consta que dentro do Convento foram vistos estranhos fenómenos nessa noite. Talvez a alma inquieta de algum dos velhos irmãos Capuchos, incomodado com aquelas presenças. |